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Mundo

O beijo do Papa

Quando vi a foto do Papa Francisco beijando a tatuagem no braço de Lidia Maksymowicz, me arrepiei e um filme passou por minha cabeça, reforçando - ao menos internamente - que, ao optar por estudar o Holocausto, a partir de pesquisas, entrevistas e repetidas viagens para diversos países do globo, encontrei algo que me motiva a seguir

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Lidia Maksymowicz é pega de surpresa pelo beijo do pontífice à tatuagem que carrega desde Auschwitz
Papa Francisco abençoa o bebê que a jornalista erechinense Andressa Collet carrega no ventre
Reencontro em Auschwitz, janeiro de 2020
Por Salus Loch
Foto Arquivo/Salus Loch/ Créditos Vaticano

Algumas pessoas se notabilizam por demonstrar carinho e fraternidade por meio de palavras, ações afirmativas e, também, gestos. O Papa Francisco é uma delas. Nos últimos dias, duas manifestações do pontífice me tocaram particularmente. A primeira, foi a bênção conferida à jornalista Andressa Collet, grávida de cinco meses de seu segundo filho, durante visita de Francisco à Rádio Vaticano - Vatican News, onde a erechinense trabalha desde 2008, atuando primeiro como estagiária, depois como freelancer e, a partir 2019, com contrato efetivo.

O segundo movimento do Papa argentino, amplamente divulgado pela mídia internacional, foi o beijo de Francisco à tatuagem de uma sobrevivente do complexo de campos de concentração e extermínio de Auschwitz, Lidia Maksymowicz, de 80 anos. Confesso que quando vi a foto, me arrepiei - e sorri. Um filme passou por minha cabeça.

Como os amigos sabem, tenho dedicado parte do meu tempo ao estudo do Holocausto tentando entender o que levou a Alemanha Nazista de Hitler, e outros colaboracionistas, a matar 6 milhões de judeus durante as décadas de 1930 e 1940 na Europa, em nome de uma suposta supremacia racial alimentada pelo discurso de ódio e fanatismo à uma ideologia de extrema-direita, macabra e cruel.

O principio

E tudo começou, ao menos no meu caso, justamente com Lidia Maksymowicz, a quem entrevistei no ano de 2015, em Cracóvia, na Polônia, para reportagem veiculada pela revista Superinteressante, do Grupo Abril (https://super.abril.com.br/historia/70-072-a-tatuagem-eterna-do-holocausto/).

De lá para cá, tive o privilégio de encontrar outros 22 sobreviventes do Holocausto, no Brasil, Polônia, Israel e na Alemanha. Dessas experiências, além da produção de conteúdos jornalísticos para veículos nacionais e internacionais, e para instituições, como o Museu do Holocausto de Curitiba/PR, tentei me tornar um ser humano melhor, aprendi bastante e fiz novos amigos, tendo publicado, em novembro 2017, meu primeiro romance, ‘A Tenda Branca’, narrando a trajetória de Gabriela Schwartz Heilbraun, a Gitta - que depois de passar por três campos de concentração e resistir à ‘marcha da morte’, hoje, aos 92 anos, mora em São José, na Grande Florianópolis.

Acima de tudo, porém, graças à entrevista inicial com Lidia - com quem voltei a me reunir em janeiro de 2020, no refeitório do Centro Internacional de Encontros da Juventude, em Oświęcim (Auschwitz), na Polônia - penso ter encontrado algo que me motiva a seguir, buscando de um jeito ou de outro, alertar atuais e futuras gerações quanto aos riscos oriundos de posicionamentos extremados, que defendam pensamentos totalitários.

A seguir, reproduzo trechos de meus encontros com Lidia, resgatando sua bela história de amor, superação e empatia - material, aliás, que já foi parcialmente divulgado pela mesma Andressa Collet, na página do Vatican News (https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2020-01/jornalista-brasileiro-dia-memoria-holocausto-auschwitz-birkenau.html), mostrando que coincidências podem caminhar de mãos dadas com belas histórias. Ao final do artigo, trago para reflexão, também, um pouco do que aconteceu com as crianças durante o Holocausto, num material produzido pelo Museu e Memorial do Holocausto dos EUA. Boa leitura.

 

70.072: A tatuagem eterna do Holocausto

Olhe ao seu redor. Possivelmente, você ame alguém. Provavelmente, você também seja amado. Pai. Mãe. Filhos. Avós. Irmãos. Marido. Esposa. Namorado(a). Amigos. Enfim, este é um sentimento inerente desde a mais tenra idade. Certo?

Não para Lidia Maksymowicz. Ao menos, não foi assim durante 72 anos de sua vida. Há apenas oito anos, em meados de 2013, ela descobriu o que era ‘amar’, graças ao nascimento de seu primeiro bisneto.

Seria ela, então, insensível? Desumana? Um monstro?

Não! Longe disso.

O distanciamento foi resultado de sua infância, ou parte dela, vivida nos campos de concentração e extermínio de Auschwitz – onde mais de 1,1 milhão de pessoas foram mortas pelo regime Nazista durante a II Guerra Mundial.

Lidia, nascida em Minsk, na Bielo-Rússia (Belarus), com o nome de Lyudmila Botcharova, chegou como prisioneira a Auschwitz em dezembro de 1943 com sua mãe e avós, e só foi sair de lá em 27 de janeiro de 1945, quando o campo – construído em 1940 – foi libertado pelo Exército Russo. Detalhe: ela não era judia; seu ‘crime’ foi ser filha de um pai perfilado do lado do exército vermelho, tendo ela e a mãe sido acusadas de ‘envolvimento com partisans soviéticos’.

 

O que Lidia viu e sentiu nas mãos do III Reich, no entanto, deixou cicatrizes que vão além do número 70.702 gravado pelos nazistas em seu antebraço esquerdo. A tatuagem, que servia para identificar a ela e, individualmente, aos mais de 1,3 milhão de prisioneiros que passaram pelos campos de Auschwitz ainda está lá, sublinhada, agora, com o beijo carinhoso de Francisco. Acontece, no entanto, que as lembranças do passado também estão presentes.

Lidia, a mais longeva sobrevivente entre as crianças que deixaram Birkenau vivas, me recebeu no Galicia Jewish Museum, em Cracóvia, em 2015. Durante mais de uma hora, contou sua história de vida, traumas e superação, tarefa que repetimos, com elementos novos, há 18 meses, em Auschwitz, num reencontro que jamais esquecerei. Disse ela: “Durante o Holocausto, eu era apenas um número. Hoje, sou uma sobrevivente que assumiu a missão de falar sobre as atrocidades que sofri para evitar que outras pessoas passem por isso. Muitos parecem não lembrar ou não querer lembrar o que aconteceu. Tenho o compromisso de educar e mostrar as consequências de governos que conduzem seus países com base no racismo, no antissemitismo e na perseguição às minorias. Não podemos deixá-los (os políticos que agem dessa forma) chegar ao poder. Esse é o primeiro ponto’, destaca.  

 

A morte como algo banal

Novembro de 1943. Soldados alemães invadem Minsk e arrastam centenas de ‘prisioneiros de guerra’ para vagões de trens que mais parecem abatedouros de gado. Empilhados, sem água ou condições de higiene (um balde servia como latrina), aqueles que resistiram à viagem ou à violência dos oficiais da SS, chegaram a Auschwitz depois de três semanas.

Entre eles, estavam Lidia (então Lyudmila, de 3 anos) sua mãe, Anna, e os avós, que imediatamente depois do desembarque foram encaminhados para o ‘lado da morte’. Esse procedimento, supervisionado por médicos nazistas, era comum. Lidia explica que só iam para os dormitórios quem apresentasse boa saúde ou fosse jovem. “Eles não queriam gente que não pudesse trabalhar. As pessoas de mais idade e os doentes, em regra, eram encaminhados direto para as câmaras de gás. Muitas crianças também. Não sei porque me escolheram para viver. Tive sorte”, conta. ‘Como era muito pequena, não entendia essas coisas. Só fiquei sabendo tempos depois o que realmente acontecia’.

Depois de sobreviveram à primeira ‘seleção’, Lidia e a mãe foram separadas – ficando em diferentes espaços; Lidia se abrigou como pode num dos barracões junto às demais crianças – muitas das quais, como ela própria, submetidas aos testes do ‘anjo da morte’, o médico alemão Josef Mengele.

Lidia relata que a mãe, Anna – que recebera a tatuagem 70.071 -, trabalhava fora do campo e, por isso, conseguia trazer-lhe, com alguma frequência (apesar do risco), pão preto e cebola. ‘Com certeza a comida de minha mãe colaborou para que eu conseguisse sobreviver. No campo, a comida era pouca e o frio que chegava a –20C no inverno nos deixava ainda mais fracas. Nosso dormitório não tinha nenhum isolamento nem calefação. Dormíamos empilhadas, em grupos de cinco, seis até sete crianças para tentarmos nos esquentar. Imagina, éramos crianças de três, quatro, cinco anos. Apesar disso, a barraca era meu mundo. Até porque, eu só tinha isso mesmo', diz.

Segundo ela, quando sua mãe lhe trazia comida, Lidia se sentia aliviada, pois não precisava pensar em ‘roubar comida das outras crianças’ – o que define como ‘instinto de sobrevivência’. ‘Além da comida, minha mãe sempre me fazia repetir meu nome, o nome dela e o de meu pai, Alexandre, que era um oficial soviético’. Lidia, porém, jamais teve informações do pai.

Para a criança Lyudmila, a morte, assim como viver em meio a baratas e ratos, era algo cotidiano. Dezenas morriam ao seu redor todos os dias. Os corpos eram levados aos crematórios. ‘Eu era muito nova, mas lembro que o cheiro era estranho. Mais tarde, fui descobrir que era de carne queimada’, suspira.

Em meados de 1944, ao mesmo tempo em que chegaram a Birkenau enfermeiras de Varsóvia, que acabaram cuidando das crianças – ‘as primeiras pessoas que nos ajudaram lá dentro’, lembra Lidia – sua mãe deixou de lhe trazer comida. Ela comentou o fato com as outras crianças. Uma delas apontou para uma pilha de cadáveres e sentenciou: sua mãe está ali! “Não sabia o que pensar. Achei que era possível que ela estivesse, de fato, morta. A cada segundo você podia perder a sua vida lá”, revela, sem emoção.

‘Apesar de tudo, tenho sorte’

Quase 15 anos depois, com a ajuda da Cruz Vermelha, através de uma agência de Hamburgo, Alemanha, soube que a mãe estava viva. Lidia, que após deixar Auschwitz foi adotada por uma família polonesa (que lhe deu uma vida e um novo nome), buscou informações e conseguiu se reencontrar com Anna, que vivia em Donestk, Ucrânia. ‘Primeiro fiquei com raiva dela por não ter me procurado. Depois, descobri que ela pensou que eu estava morta. Entendi a situação”, explica.

Durante o encontro realizado em Moscou, na URSS, em 1960, no entanto, Lidia teve uma reação mais do que fria. “Não senti nada. Sabia que estava diante de minha mãe, mas eu não a conhecia. Não consegui ter sentimento algum. Via que ela estava emocionada, mas eu não sentia nada. Foi um momento especial, embora, internamente, eu já estivesse destruída. Sabia que ela era minha mãe, mas foi difícil sentir ou demonstrar amor por ela’.

 

Café e pão com margarina

Lidia sobreviveu a Hitler. Contudo, a outrora criança forte – mais alta do que a média das demais em Auschwitz/Birkneau – se transformou numa esquálida Lyudmila que viu, no fim de janeiro de 1945, a chegada de um novo grupo de soldados ao seu barracão. Esses, revela, vestiam uma ‘roupa diferente’. Com estrelas. ‘Eu reconhecia aquilo, mas não sabia da onde. Ficamos assustadas. Corremos. Gritamos. Tentamos nos esconder. De repente, no entanto, notamos que eles não queriam nos fazer mal. Pelo contrário, nos deram uma xícara de café e pão com margarina. Lembro até hoje do sabor. Era tão gostoso. Foi maravilhoso. A melhor sensação da minha vida”, conta.

O exército vermelho encontrou em Auschwitz 600 corpos e 7,5 mil prisioneiros (500 deles crianças).

 

‘Nova vida’

Finalmente ‘liberta’, Lyudmila virou Lidia e passou a morar com uma família católica polonesa na cidade de Oswiecim (Auschwitz, em alemão), no sul da Polônia. O impacto da mudança, porém, foi duro. Mesmo tendo cama, água quente para o banho e comida farta, adoeceu gravemente. ‘O choque físico e mental foi grande’, explica. ‘Depois de recuperada, nas brincadeiras com as demais crianças, minhas atitudes chamavam a atenção. Lembro que eu dizia que quem não fizesse direito iria para as câmaras de gás (meio pelo qual os nazistas exterminaram centenas de milhares de pessoas) ou para o paredão de fuzilamento. Eu não era uma criança normal. Não sabia brincar. Ainda hoje penso como me comportava e como teria sido fácil transformar aquela inocente e frágil criança num potencial assassino ou algo do tipo, pois eu não me importava com nada (em relação aos sentimentos dos outros)’.

 

 

Descobrindo o amor

Lidia casou. Teve filhos. Netos. Fez um capital razoável (contando, inclusive, com indenizações da Guerra). Adquiriu propriedades. Fez diversas viagens internacionais – há alguns anos, esteve no Brasil, em plena Sapucaí, prestigiando o carnaval carioca.

Mas, assim como não sabia brincar, também não sabia amar. Até que algo aconteceu. ‘Não sei explicar. Isso foi há dois anos, com o nascimento do meu primeiro bisneto. Senti algo diferente, forte e carinhoso. Aquela criança me mostrou que eu poderia amar alguém. Vi então que nada é para sempre. Senti-me humana de verdade’, conta. ‘Todos temos momentos bons e ruins, precisamos valorizar os bons. Acho que meu bisneto me deu isso, um incrível bom momento. O momento de amar. Que eu possa prolongá-lo o máximo possível’, ensina ela, finalmente, emocionada.

 

 

Holocausto matou cerca de 1,5 milhão de crianças

As crianças eram especialmente vulneráveis durante o Holocausto. Os nazistas defendiam o assassinato de crianças de grupos “indesejáveis” ou “perigosos”, de acordo com a sua visão ideológica, tanto como parte da “luta racial” quanto como medidas de segurança preventiva. Os alemães e seus colaboradores matavam crianças, ainda, como retaliação aos ataques, reais ou inventados, dos partisans.

No total, foram assassinados cerca de 1,5 milhões de crianças no Holocausto, sendo um milhão delas judias; dezenas de milhares de ciganos ’Romas; além de crianças alemãs com deficiências físicas ou mentais que viviam em instituições; polonesas, e aquelas que moravam na parte ocupada da URSS. As chances de sobrevivência imediata dos adolescentes, judeus e não-judeus, entre 13 e 18 anos eram maiores, já que podiam ser enviados para o trabalho escravo.

O destino das crianças pode ser classificado da seguinte maneira, conforme o Museu do Holocausto dos EUA: (1) crianças assassinadas assim que chegavam aos campos de extermínio; 2) crianças mortas assim que nasciam ou nas instituições onde viviam; 3) crianças que nasciam nos guetos e campos, mas que sobreviviam porque os prisioneiros as escondiam; 4) crianças, normalmente maiores de 12 anos, que eram usadas como escravas ou em experiências “médicas”; e 5) crianças que morriam devido às represálias nazistas nas chamadas operações anti-partisans. Um sexto grupo seria o de crianças que viviam nos países ocupados pela Alemanha durante a guerra e passavam por um processo de ‘germanização’, liderado por Heinrich Himmler. A tentativa tresloucada de supostamente “salvar a pureza do sangue ariano” se dava com a ação de “especialistas raciais” das SS, que ordenaram que milhares de crianças polonesas, soviéticas, iugoslavas, norueguesas e outras, com características “arianas”, fossem raptadas e levadas para o Reich a fim de serem adotadas por famílias alemãs ‘racialmente corretas’.

Por sua vez, as crianças que chegavam aos campos de extermínio eram enviadas, em sua maioria, direto às câmaras de gás. Quem ‘sobrava’, principalmente os gêmeos, restavam expostos a experiências médicas cruéis que resultavam invariavelmente em morte ou danos permanentes. Cinco a sete mil crianças alemãs também foram assassinadas nos programas de “eutanásia” nazista.

Os nazistas mantinham, ainda, dezenas de milhares de crianças sob condições aterrorizantes nos campos de concentração e de trânsito, como ocorreu com Anne Frank e sua irmã em Bergen-Belsen, e também com crianças não-judias, órfãs de pais assassinados pelas unidades militares e policiais.

Apesar de sua grande vulnerabilidade, muitas crianças conseguiram meios de sobreviver roubando e trocando o produto de suas atividades por comida e medicamentos.

Os jovens que participavam dos movimentos juvenis ajudavam em atividades secretas da resistência, e muitas crianças fugiam, sozinhas ou com seus pais e familiares, para acampamentos organizados por partisans judeus.

Entre 1938 e 1940, o Kindertransport (Transporte das Crianças), era o nome informal de um movimento de resgate que levou milhares de crianças judias, sem seus pais, para locais seguros na Grã-Bretanha.  

Após a rendição da Alemanha nazista e o fim da Segunda Guerra, refugiados e pessoas deslocadas passaram a procurar seus filhos por toda a Europa. Havia também milhares de órfãos nos campos para refugiados. Um grande número de crianças judias foi levado do leste europeu para áreas a oeste da Alemanha ocupada, em um movimento de êxodo em massa denominado Brihah, com a ajuda da organização Youth Aliyah, Imigração Jovem. Estas crianças foram posteriormente levadas para o Yishuv, nome dado à área dos assentamentos judaicos dentro do Mandato Britânico na Palestina, onde em 14 de maio de 1948 o Estado de Israel proclamou sua independência.

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