Não sei se foram os algoritmos que nos botaram em bolhas, as fake news que nos alienaram, ou nós que perdemos a capacidade de viver em sociedade. Independente do motivo, algo muito grave aconteceu e caminhamos rumo a um futuro assustador.
Há não muito tempo, reinava a regra cortês de que “política, religião e futebol não se discute.” Tínhamos o direito de ter nossa religião e praticá-la em nossa vida cotidiana — e estava tudo bem. O nosso time do coração era por quem torcíamos, não importando quão mal ele estivesse, e ninguém tinha o direito de dizer que era errado torcer por ele. Também tínhamos nossos ideais políticos, nossos candidatos, nossos partidos — e todos faziam parte da democracia pacificamente. A esquerda era oposição da direita, e vice-versa. Podíamos debater por horas o que considerávamos melhor para o povo, numa mesa de bar, e sair como bons amigos.
Diversas vezes debati sobre bandas, filmes, livros com várias pessoas — e cada uma tinha sua opinião. E, independentemente de quão extremamente diferentes elas fossem, entendíamos que eram apenas isso: opiniões. E por que eu odiaria ou atacaria pessoalmente alguém que não gostasse do mesmo projeto arquitetônico que eu?
Recentemente, comentei no Threads sobre uma casa modernista assinada por Paulo Bastos. Disse que, mesmo sendo visualmente agradável, ela não me passava uma sensação de aconchego ou de lar. A resposta de outro internauta foi me chamar de burro e falido, afirmando que eu nunca teria uma casa própria e, portanto, não deveria opinar sobre uma casa de milhões.
E eu me pergunto: desde quando não posso opinar? Devo observar o mundo passivamente? Sem pensar? Sem analisar? Sem sentir? É isso que se espera de um humano hoje em dia? E por que a primeira atitude dessa pessoa, ao ver alguém discordar do seu gosto pessoal, foi tentar reduzir meu valor como indivíduo e me ofender? Afinal, não foi Paulo Bastos quem me respondeu. Aquele indivíduo não projetou aquela casa, nem era seu proprietário, tampouco estava perto de comprá-la. Ele ficou pessoalmente ofendido por eu discordar da opinião dele? Que loucura é essa?
Vivendo num Estado laico e democrático, o mínimo que devemos fazer é respeitar opiniões contrárias às nossas — desde que, obviamente, essas não preguem o ódio ou o extermínio de alguém, pois essas, por natureza, são antidemocráticas. E, infelizmente, estão se proliferando demais.
A ordem natural das coisas é: os funcionários lutarem pelos direitos dos funcionários, e os patrões, pelos direitos dos patrões. Os velhos serem mais conservadores, e os jovens, progressistas. É isso que faz a democracia funcionar: os que querem um futuro diferente e os que sabem que não se pode esquecer do passado e repetir os erros.
Lembro-me de ficar abismado com o fanatismo nas eleições municipais de cidades pequenas, em que vizinhos viravam inimigos mortais na escolha do prefeito — algo que, sinceramente, poderíamos fazer secretamente, pois nem teria tanta influência no dia a dia das pessoas. E o que é um voto?
Hoje, nos tornamos inimigos mortais por causa do que acontece em Brasília — ou pior, nos Estados Unidos — algo tão distante de nós. Vamos realmente abrir mão de amigos que nos ajudaram incontáveis vezes? De familiares que estiveram ao nosso lado uma vida inteira? Por causa de um cara que nem sabe que existimos, muito menos se importa conosco, ser diferente do desconhecido escolhido por eles?
Devemos discordar. Devemos debater. Devemos querer mudar. Mas jamais nos tornar inimigos. Jamais odiar o outro. Jamais querer matar o outro.
Somos cidadãos de uma mesma pátria que tem seus defeitos — e é nossa responsabilidade consertá-los. Não devemos abandonar, entregar ou desistir do que é nosso. Somos o mesmo povo miscigenado, cheio de culturas, religiões, ancestralidades — e que sempre viveu em paz.
Não vamos perder nossa maior qualidade.