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Opinião

Entre o amor, o mal e algo mais

Nova biografia de Hannah Arendt traz um lado mais afetivo de uma das principais pensadoras do século XX

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Contribuição semanal de departamento de História
Por Salus Loch
Foto Ilustrativa

Durante entrevista concedida em 1964 ao canal alemão ZDF, Hannah Arendt – uma das principais pensadoras do século XX – revelou ao jornalista Günter Gaus que "provavelmente ainda estaria rindo três minutos antes da morte certa”.

Onze anos depois, na noite de 4 de dezembro de 1975, a teórica política daria seu último sorriso – e derradeiro suspiro – ao ser vítima de um ataque cardíaco fulminante enquanto recebia amigos em seu apartamento, no número 370 da Riverside Drive, em Nova Iorque, EUA.

Polêmica e inspiradora, Hannah sustentava que é no agora que passado e futuro se encontram. E assim, até hoje, o pensamento da alemã de origem judaica segue vivo, chamando à reflexão uma sociedade marcada pela pandemia de coronavírus, responsável por ceifar a vida de 4,4 milhões de pessoas, e que vê, novamente, discursos autoritários e populistas (flertando com o totalitarismo), ganhando terreno em diferentes cantos do planeta.

É diante deste contexto que a escritora sueca e doutora em teologia e ética, Ann Heberlein, 51, resolveu transformar seus estudos de mais de duas décadas a respeito de Hannah Arendt numa produção biográfica, dando origem ao livro ‘Arendt: entre o amor e o mal’, lançado no Brasil pela Companhia das Letras no raiar de 2021.

 

Interesse na pessoa

Na obra, a professora da Universidade de Lund se propõe, a partir de pesquisas em livros, textos, registros de diários, cartas, poemas e entrevistas, a trazer um lado mais afetivo de Hannah Arendt, oferecendo um retrato inédito, que aproxima os temas políticos apresentados pela autora de ‘Eichmann em Jerusalém (1963)’ e ‘Origens do Totalitarismo (1951)’ à vida privada da filósofa, com sua fuga da Europa, a fim de escapar do Nazismo, e seus famosos amantes e amigos, incluindo Martin Heidegger, Walter Benjamin, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre e Karl Jasper.

O texto de Ann Heberlein, contudo, ao tempo em que se estende por um período vital da história do mundo ocidental, perpassando encontros, desencontros e enfrentamentos de Arendt com a doutrina de Adolf Hitler e as crises da Guerra Fria, não busca, necessariamente, ir a fundo na filosofia ‘arendtniana’.

Num corte geral, a leitura das 256 páginas serve como uma oportuna introdução ao mundo de Hannah Arendt, mesclando a ‘pessoa’ com a ‘produção acadêmica’ que a acompanha, o que, eventualmente - e apesar da cadência textual -, possa frustrar as expectativas de quem busca uma biografia mais intelectualizada ou densa.

 

Acessível

Antes que pedras reais, ou virtuais, sejam arremessadas na direção de Ann Heberlein é importante dizer: ao tornar Hannah Arendt acessível para o recém-chegado, sem esquecer de adicionar novos sabores aos devotos, a sueca nascida em Malmo cumpre um papel elogiável, o que, por si só, torna sua pesquisa válida e bem-vinda.

 

Esperança necessária

Mais do que isso, porém, a mensagem que fica vai além do título da obra, superando o amor e o mal para alcançar a discussão a respeito da esperança necessária.

No Dentktagebuch, seu diário intelectual, Hannah Arendt sustenta que é preciso ‘amar o mundo tanto quanto pensamos que a mudança é possível’ e ensina: a vida vale a pena ser vivida. Ideia reforçada depois do acidente de trânsito que sofreu em 1962, ao voltar para seu apartamento, perto do Central Park, em Nova Iorque. A pensadora descreveu o incidente em carta à amiga Mary McCarthy: “Durante um momento, tive a sensação de que cabia a mim decidir se queria viver ou morrer. Embora não achasse que a morte fosse horrível, achei que a vida, na verdade, é muito bonita e que gosto muito de viver”.

A passagem, indica Ann Heberlein, permitiu a Hannah reconciliar-se com a incompletude e com a fragilidade do mundo, reforçando o ‘dever de amar o mundo’, ou simplesmente, ‘Amor mundi’, como significado de cuidar da vida para que ela continue existindo.

Trocando em miúdos, emerge o raciocínio de que devemos ser capazes de amar o mundo como ele é, em todas as suas fragilidades e imperfeições – o que não significa aceitação acrítica nem rejeição desdenhosa, mas o enfrentamento inabalável e compreensão daquilo que é.

Sob esta perspectiva, a alemã dizia ser preciso ter esperança de que a mudança é possível, pois, sem a capacidade de enxergar uma vida além das circunstâncias atuais, a pessoa pode se ver propensa a desistir. “Alguém que tem a capacidade de abraçar a esperança pode ter a capacidade de sobreviver a atrocidades e à desumanidade”, sacramenta Hannah Arendt, que fez uso de tal sentimento/força para suplantar o jugo nazista, tendo sobrevivido ao internamento de Camp Gurs, na França, à vida de refugiada, ao escape da Europa, ao exílio nos EUA e ao enfrentamento da nova língua, o inglês, que a abalara pela desconhecimento em um nível profissional.

 

Trajetórias

A seguir, compartilho fragmentos da trajetória desta judia alemã que foi tão vital, e ao mesmo tempo tão mal compreendida pela sociedade e por alguns patrícios, durante uma conturbada e magnífica existência, responsável por renovar, ao seu modo, o jeito de contar as histórias difíceis, tensas ou pesadas, qualificadas pelo historiador alemão Bodo von Borries, 78, como ‘Burdening History’. Particularmente, devo confessar: ainda torço para que o último sorriso de Hannah Arendt não se apague, afinal, como diz o próprio Bodo, a história só é aprendida de forma eficaz sob três condições: se novas perspectivas podem ser ligadas às antigas; se estiver conectada às emoções (negativas ou positivas); e se é relevante na vida. E, convenhamos, do século XX para cá, poucos foram - ou são - mais relevantes do que Hannah Arendt.

 

O começo

Embora o livro de Ann Heberlein traga detalhes da infância de Hannah, aqui cabe informar que seu nascimento ocorreu em Hanover, Alemanha, em 1906. O pai morreu quando ela tinha sete anos, tendo sido criada pela mãe, Martha Cohn Arendt, que lhe comprou um diário. Mais tarde, Hannah, já na Universidade de Marburg, estudou filosofia com o existencialista Martin Heiddeger (que se revelaria simpatizante do nazismo) e com quem também teve um caso, numa relação que trouxe efeitos ao longa da vida. Hannah concluiu sua tese de doutorado ‘O amor e Santo Agostinho’ na Universidade de Heidelberg sob a supervisão de Karl Jaspers.

 

Prisão

Em 1929, publicou sua dissertação e se casou com Günther Stern. Eles se divorciaram em 1937. Em 1933, ela trabalhou para a Federação Alemã de Sionistas, liderada por Kurt Blumenfeld, quando a polícia política a prendeu. Conseguiu fugir para Paris. Na França, trabalhou para a organização Youth Aliyah, que resgatou jovens judeus. Lá, conheceu o homem que se tornaria seu segundo marido, Henrich Blücher. Arendt foi presa em um campo de detenção em Gurs, no sudoeste do País. Depois de escapar, ela e Blüncher fugiram da Europa, indo para Nova Iorque, em 1941. Durante a década de 40, Hannah Arendt escreveu ensaios sobre antissemitismo, refugiados e a necessidade de um exército judeu. Trabalhou como editora da Schocken Books e atuou como diretora executiva da organização The Jewish Cultural Reconstruction. Ela e Blüncher moraram em Riverside Drive, em Nova Iorque, e em Kingston, perto do Bard College, onde o marido lecionou por 17 anos.

 

Principais obras

A década de 1950 traria algumas das principais obras de Hannah Arendt: ‘As Origens do Totalitarismo’, estudo perspicaz das fundações históricas e intelectuais dos regimes de Hitler e Stalin; e ‘A Condição Humana (1958)’, retrato - ainda atual - sobre o retrocesso da vida pública na era moderna. Arendt escreveu história não como uma historiadora, mas como pensadora, com base em eventos e ações para alcançar insights originais e importantes sobre a predisposição moderna ao totalitarismo e as ameaças à liberdade, representadas tanto pela abstração científica quanto pela moralidade burguesa.

 

Pioneira

Sem abrir mão da independência, Hannah Arendt nunca aceitou emprego de professora permanente. Foi, no entanto, a primeira mulher a ser nomeada professora titular em Princeton. Também lecionou nas Universidades de Chicago, Berkeley e na The New School.

 

Mal banal

Foi colaboradora frequente da The New York Review of Books, Dissent e The New Yorker, para quem cobriu, direto de Israel, em 1961, o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela logística do Holocausto (extermínio de judeus conduzido pelos nazistas e colaboradores durante a Segunda Guerra Mundial). A série de reportagens do julgamento seria transformada no livro ‘Eichmann em Jerusalém – um relatório sobre a banalidade do mal’, vindo a despertar uma tempestade de controvérsias. Hannah Arendt argumenta que Eichmann não era um monstro, mas um burocrata comum, preocupado em cumprir seu dever, sem, necessariamente, refletir a respeito das consequências. Segundo ela, o nazista não se tornou um assassino em massa apenas por ódio, mas pela devoção fervorosa ao Führer, seu mito, algo que lhe dava um senso de importância. Em suas próprias palavras, Eichmann dizia ser alguém que temia ‘viver uma vida difícil e sem liderança’. Tal desejo de se provar significativo, combinado com o uso de clichês e moralidade de papel burocrático, o teria tornado incapaz de pensar com clareza sobre o que estava fazendo: a ‘terrível banalidade do mal, que desafia a palavra e o pensamento’. Esse fanatismo ideológico impensado seria, na conclusão de Arendt, a face do mal no mundo moderno.

 

Olhares

Embora muitas vezes descrita como filósofa, Hannah Arendt rejeitou esse rótulo sustentando que a filosofia, em regra, estaria preocupada com o ‘homem singular’. Ela se qualificava como uma teórica política, entendendo que seu trabalho se concentraria no fato de que “os homens; não o homem, vivem da terra e a habitar o mundo”.

Publicou, entre outros, três antologias: ‘Entre o Passado e o Futuro’ (1961); ‘Homens em Tempos Sombrios’ (1968); e ‘Crises da República’ (1969). Seu último livro inacabado chegou às ruas como ‘Vida e Mente’.

Sua obra, num recorte ampliado, lida com a natureza do poder, democracia direta, autoridade e totalitarismo, entregando uma visão rica e convincente da necessidade humana de uma vida pública e política.

Para Hannah Arendt, que está enterrada ao lado de Blücher no cemitério do Bard College, ao passo em que sua responsabilidade era entender, a busca pelo entendimento não é sinônimo de perdão; nem de sorrisos fáceis.

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