As redes sociais (e não só) deixam claro: o desejo mais profundo do ser humano é o de criticar os outros/as. Não é o de alcançar a felicidade, a paz na Terra, a imortalidade. Riquezas. Não é o de saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Que o Grêmio não caia de novo para a milésima divisão. Não. É o de criticar os outros/as, seja velada ou explicitamente, seja com justeza ou ignorância, seja específica e pontualmente ou até o limite do “cancelamento” – ao mesmo tempo que, com a outra mão, fazemos a exposição de nossas excelentes opiniões e vitórias, reais ou inventadas, até a exaustão e a náusea (“todos os meus amigos têm sido campeões em tudo”, anotou Fernando Pessoa).
Fiquemos, por ora, com o que ocorre na primeira mão. Há múltiplas possibilidades de se explorar o fenômeno. Eu, hoje, escolhi a de recorrer aos Vedas, os antiquíssimos textos que constituem a base literária e religiosa do Hinduísmo. Uma outra perspectiva, uma luz primaveril batendo de lado vinda de uma outra cultura, de um outro tempo, de uma outra galáxia. Lá, encontram-se aquelas que seriam as qualidades essenciais de um sábio, e, entre elas, a virtude denominada “Apaisuna”: a “aversão a criticar continuamente”. Isso reverbera no Dhammapada: “Fáceis de serem vistos são os defeitos dos outros, difíceis mesmo de ver são os nossos; os defeitos dos outros são revelados como no ato de separar a casca do grão, mas os seus próprios defeitos você esconde como o trapaceiro esconde a jogada perdida.”
Ainda em pauta védico-budista, temos o verso da canção de Luís Nenung: “Debele o medo/Desfaça a crítica”; e o papo reto de Padma Samten: “O processo da crítica não tem utilidade no Caminho.” Pensei: há um aspecto de “viva e deixe viver” nisso, não há? Sim, e há também a pedagogia do exemplo, vastamente presente e bem importante nas culturas do Extremo Oriente: seja e faça o que tu pensas e dizes – não haverá discurso ou crítica mais eloquente ou influente.
Mas para que a tradição faça sentido, ela precisa ser sempre relida, ou decai em crença velha. Apaisuna não é, não pode ser, mera resignação. Vivemos e entendemos o mundo desde a onipresença do termo “crítica”: da “Razão Pura”, da “Razão Prática” e da “Economia Política”, à “Pedagogia Crítica dos Conteúdos”, e assim por diante, e isso é bom. Crítica é bom. A lição, então, aqui, parece residir em um certo “calibramento” do exercício da crítica, no cultivo de uma atitude de espírito que se lembre de considerar com paciência, compaixão e honestidade intelectual (e linguagem não violenta) os contextos, as circunstâncias e as razões do outro/a; no resguardo de um espaço mental livre e sem críticas apriorísticas. Uma aversão à cultura do “sacar mais rápido” e do “lacrar”. Muitas vezes é difícil – e às vezes parece impossível -, mas este excerto do Lojong pode ajudar: “Sempre que estiver na companhia de outras pessoas, vou aprender a pensar em minha pessoa como a mais insignificante dentre elas, e, com todo o respeito, considerá-las supremas, do fundo do meu coração.”
Difícil...