Há um som que corta o ar insistentemente. Um zumbido breve, irregular, que parece dar movimento ao silêncio e que aparece nas horas mornas, quando o tempo parece preguiçoso e a atenção humana se distrai. E, de repente, lá estão elas, pequenas e sem pedir licença, mas impondo existência. Pairam, desviam, retornam. Vivem o instante com uma urgência que não se explica.
Talvez seja isso que mais incomoda: a ausência de propósito aparente. O homem quer compreender tudo, mas há vidas que não se explicam, apenas acontecem. Enquanto o humano se perde em planos e cronogramas, as moscas atravessam o espaço com a leveza de quem não precisa de direção. Elas não têm pressa, mas também não têm pausa. Não esperam o amanhã, não se prendem ao ontem. São movimento puro, e talvez por isso revelem o que esquecemos, que o presente é o único território realmente nosso.
Há nelas uma persistência admirável. São repelidas, espantadas, perseguidas, e ainda assim voltam. Não como afronta, mas como afirmação. Seu voo é breve, mas inteiro. Seu tempo é pequeno, mas cheio. As moscas não conhecem o medo de recomeçar. Vivem como quem entende que desistir não faz parte do instinto, e que existir é, de alguma forma, insistir.
O ser humano, com sua mania de controle, observa as moscas e vê nelas apenas desordem. Mas o caos é uma forma de harmonia que ainda não aprendemos a decifrar. O voo segue uma lógica que não cabe em linhas retas. É o traçado invisível de um ritmo mais antigo que qualquer razão. O mesmo ritmo que move o vento, o fogo e o pensamento.
Talvez o desconforto venha daí: as moscas não se encaixam nas medidas humanas. Não seguem hierarquias, não distinguem o que é nobre do que é simples. Voam sobre tudo: o luxo, o lixo, o claro e o escuro. E tratam o mundo inteiro como uma coisa só. Há uma igualdade natural nesse gesto. Elas não separam, apenas atravessam.
E, nesse atravessar, há uma lição. A vida não é um ponto fixo, mas uma sequência de voos curtos, desviados e incertos. A beleza não está em chegar, mas em continuar se movendo, mesmo quando ninguém entende o caminho. As moscas sabem disso sem precisar pensar, pois sua sabedoria está nas asas, não nas ideias.
O humano, com sua pressa por sentido, esquece de olhar o instante como ele é. Quer transformar tudo em função, tudo em propósito, tudo em meta. Mas há existências que bastam por si mesmas. As moscas não esperam reconhecimento. Elas cumprem seu papel no ciclo daquilo que respira. Lembram que a vida não precisa ser grandiosa para ser completa.
E há beleza nisso. Uma beleza que não se exibe, mas se revela nas pequenas persistências e no simples fato de estar. Elas são o contraponto à nossa ansiedade: mostram que viver não é conquistar o mundo, mas habitá-lo, mesmo que por um instante.
Quando o dia se alonga e a luz começa a mudar, uma ou outra ainda desenha no ar. É como se o tempo tivesse corpo, e esse corpo batesse asas. Elas seguem sem aplauso, sem roteiro e sem pausa. Apenas seguem. Quem sabe, respondendo ao segredo que o homem tenta escrever há séculos: o de existir.
As moscas não sabem o que é futuro, mas o enfrentam todos os dias. Não conhecem eternidade, mas vivem como se cada segundo bastasse. Isso as aproxima mais de nós, ou do que gostaríamos de ser.