Na live dessa semana, em tempos de pandemia, o sapateiro de Bruxelas aborda mais um curioso assunto de seu pródigo repertório de cultura inútil - segundo seu próprio conceito. A bola da vez, refere-se a calendários e suas curiosidades.
Explica inicialmente o artesão que a palavra calendário promana do latim calendarium que, por sua vez, procede de calendae – o primeiro dia de cada mês romano, na Antiguidade.
E segue a prédica lembrando quatro nomes ilustres ligados à história dos calendários: Rômulo, Numa Pompílio, Júlio César e o papa Gregório XIII.
Excetuando-se os calendários Egípcio e Próximo Oriente, no Ocidente, ao que se tem notícia, o primeiro calendário foi criado por Rômulo em 753 a.C., quando da fundação de Roma. E ensina que a época, o ano era composto por apenas 304 dias e dividido em dez meses.
Já Numa Pompílio, sucessor de Rômulo, mais apressado e imediatista, só fez ampliar os desencontros e lambanças temporais – como, decerto, sempre fazem os acelerados apressadinhos – e estabeleceu o ano de 155 dias, porém, dividido em doze meses.
Sete séculos depois, Júlio César, bem mais sagaz, previdente e organizado, reformulou – dessa vez para melhor – a contagem do tempo oficial. Para tal aperfeiçoamento, o conquistador da Gália e do mundo, contratou o afamado consultor em astronomia Sosígenes. Juntos, o general e o cientista, concluíram que o ano normal passaria a contar com 365 dias e que, visando ao perfeito ajuste entre o ano solar e o ano sideral, seria acrescentado um dia a cada quatro anos. Daí em diante, o ano mais longo, de 366 dias, passou a receber a denominação de “ano bissexto”. Ainda, no mesmo pacote, foram devidamente enxertados os meses de janeiro e fevereiro, fechando os doze meses atuais – assevera o mestre.
O nome do primeiro mês do ano provém de januarius, que tem a ver com gêmeos ou duas faces: uma voltada para o tempo passado e outra para o futuro, o antes e o depois. Fevereiro, por sua vez, igualmente emana do latim, februarius, reportando-se Fébruo, deus da morte e da purificação.
Esclarece o velho sábio, que até aqueles dias, o ano iniciava-se em março, ou martiu, homenagem ao deus da guerra, Marte. Na sequência vinha abril, ou aprile, alusivo à abertura das flores na primavera do hemisfério norte.
Maio, ou maiu, indicava majus, dedicado ao másculo e maiúsculo deus Apolo. O quarto mês do ano, então, era junho, ou juniu, alusivo ao deus máximo pagão, Júpiter para os romanos, o mesmo Zeus dos gregos. Julho e agosto correspondiam, respectivamente, ao quinto e sexto mês e não eram dedicados a ninguém, pois os romanos haviam esgotado seu repertório de homenagens. Por ordem e na continuidade, vinham o sétimo, o oitavo, o nono e o décimo mês, correspondentes aos atuais setembro, outubro, novembro e dezembro, que encerrava o ano.
Por ocasião do assassinato de Júlio César, vítima de facadas traiçoeiras perpetradas por senadores romanos (não muito diferente de seus similares tropicais atuais) a 14 de março ano 44 a.C. Daí, por exigência popular, o quinto mês, quintilis, passou a se chamar julho, justo preito ao grande líder militar. Na sequência, o herdeiro de César, seu sobrinho-neto e filho adotivo, imperador romano Caio Júlio César Octaviano Augusto, mais lembrado pela história como Otávio Augusto, resolveu por galanteio próprio autonomear o mês seguinte como agosto – ligado ao seu augusto título. Como julho contava trinta e um dias, o sobrinho não deixou por menos e cravou o trinta e um no seu próprio mês. Com a soberba alteração, acabou por sobrar dias, que foram devidamente amputados de fevereiro, o segundo e último mês anexado pela nova fórmula.
A folhinha repaginada passou a vigorar a partir de 45 a.C., e o calendário foi batizado “Juliano”, em honra a seu patrono. Também, na ocasião, ficou igualmente combinado que os anos bissextos seriam divisíveis por quatro. Até aí, tudo certo.
Acontece que ao arredondar o ano para 365 dias e seis horas – por isso o acréscimo de um dia a cada quatro anos – armou-se outra confusão, afirma o estudioso parceiro. Havia uma imprecisão cronológica e sutil não percebida: a significativa diferença anual de onze minutos e quatorze segundos entre o ano sideral e o ano solar. Cousa pequena, que no andar do tempo se avoluma.
Por conta desses minutos e segundos, em 1582 acumulava-se um erro de incríveis treze dias. Foi então a vez do papa Gregório XIII entrar na história para corrigir a distorção e implantar o calendário Gregoriano, vigente até hoje. Para pôr as coisas literalmente nos devidos tempos e lugares, Gregório sacou dez dias daquele ano santo, ao determinar que após a noite de 4 de outubro amanheceria o dia 15 do mesmo mês. Para completar o necessário remendo, estabeleceu ainda que o último ano dos três séculos seguintes não seriam bissextos. Assim, os anos de 1700, 1800 e 1900 foram ordinários, sem o dia 29 de fevereiro. Já 2000 voltou a contar com o dia 29 de fevereiro.
Enfim - diz o artesão - entre outras utilidades, o calendário nos permite organizar melhor a vida, ao propiciar um encontro simples e prático entre passado, presente e futuro. O tempo pré-moldado permite uma relação direta da memória com a esperança ou mesmo com os receios e surpresas do porvir.
A agenda diária e seus implacáveis dias úteis (e inúteis) permite planejar as sincopadas horas e até as meias horas, para ter-se alguma paz nas noites e folguedos.
Por outra – segundo o filósofo galhofeiro - nunca se deve fazer grandes previsões, especialmente sobre o futuro. É bem mais fácil prever e chafurdar no passado, até porque é para lá que todos iremos para sempre - acentua profundo e enigmático.
Resumindo – afirma o velho Sapateiro de Bruxelas - resta apenas a exatidão a realidade palpável do presente: ovo ainda intacto, nem partido como o passado, nem chocado como o futuro. E evoca Eça de Queiroz que disse em alto estilo: “As datas, só elas dão verdadeira consistência à vida e à sorte”.
Encerra com a fala de Augusto, supracitado imperador, que em seu leito de morte resumiu mais que o tempo, mas a própria aventura humana: “Acta est Fabula”. Ou seja: a peça foi representada.
Médico,
Membro da Academia Erechinense de Letras,
Vice-presidente da A.A. Da Biblioteca Pública do RS.