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Opinião

As cartas de amor

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Alcides Mandelli Stumpf
Por Alcides Mandelli Stumpf
Foto Rodrigo Finardi

Acabaram-se as cartas, as velhas cartas de amor. Terminaram-se os dias. O tempo acabou. Não existem mais missivas e, por consequência, os missivistas. Não há mais sequer respostas – bem ou mal-educadas, bem ou mal escritas. Não existem mais nem sim, nem não. Talvez, nem existam mais namoros ou até noivados. Enfim, repito, não existem mais as cartas de amor...

“Passei por ti tantas vezes que não lembro mais de mim...” Ou: “Devo fingir que existem outras...”. Sem dúvida seriam bons inícios de antigas mensagens. Ao menos melhores que a manjada: “Receba essas mal traçadas linhas, meu amor...” que, graças a Deus, definitivamente, também sumiu (mediocridade sempre houve). Da mesma forma, sumiram os sentimentos longos e ternamente explícitos, embalados em lânguidas e alentadoras letras.

O tempo se tornou estático (deixou de ser estético) e o que sobra é e-mail, comunicação imediata. Por ora, me resta apenas lamentar as amigas queridas da infância, hoje senhoras idosas e sem serventia, que insistem em não morrer – pelo menos para alguns, que as cultivam com romântico ardor. Qualquer composição poética soa ridículo, como soa ridículo o amor no papel – pois vejam, até as certidões de casamento estão sendo preteridas. 

Assim passaram as cartas, e assim estão decretados os novos tempos digitais. A fala escrita surgiu insossa, em tela luminosa, asséptica, inodora e toda errada. Não existem mais cadernos de caligrafia (que no meu caso não ajudaram muito), mata-borrões ou mesmo borrões de lágrimas ou tangos. Creiam os jovens, havia beijos cravados de rubras saudades, carimbos de batons, que selavam uma grande paixão. Depois de lidas, as ditas eram cuidadosamente dobradas e guardadas em caixas de sapatos ou mesmo em pequenos baús de sândalo, extensões de corações distantes, junto a folhas de louro para espantar as traças e os anos. A solidão, a eternidade que separava o próximo encontro, se foi embora acompanhada pelo doce aroma do papel viajado, com resíduos de Givenchy III ou Lancaster, de acordo com o gênero do emitente. As expectativas infindas, o atraso amigo do carteiro, as distâncias imensas, foram anuladas ou simplesmente suprimidas. Desapareceram as reminiscências, os desapontamentos, os esquecimentos, as ausências e as esperanças do reencontro “Par-Avion”.

Saibam os novos leitores, – por incrível que pareça – no passado, até casamento por correspondência havia. E havia enleios, juras eternas, versos e pétalas de rosas, além de propostas que não fazem mais sentido – até porque, com o andar do tempo, se tornaram desnecessárias e obsoletas.  Vocês não imaginam como era bom namorar por carta – os mais velhos que me desmintam, se tiverem coragem.

“Só uma disposição, em mim, é generosa – a do amor. Se um dia fores minha, ao ter-te, amar-te-ei mais, e mais ainda depois de ter-te. Vestirei o teu corpo com as minhas mãos e algumas vezes fecharei os olhos, para ver-te ainda mais bela. Haverá horas lentas de ciúmes, e um silêncio angustiado sufocará as palavras que nos fariam negociar o perdão. Ah, o martírio dos amantes, que não acreditam, que não se confiam, que não têm senão um cárcere de medos, onde afogam o sentimento ‘espiritualíssimo da carne’”. Agora, tente imaginar esse texto, do grande Antônio Maria, cronista carioca de décadas passadas, escrito no computador? É difícil, não? Certamente impossível.

E tem mais: “Grandes são os desertos e tudo é deserto. / Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes / desertas porque não passa por elas senão elas mesmas...”. Foi assim que Fernando Pessoa, na sua genialidade, profetizou a nova relação humana, a rede universal, a internet.

Ao final, arrisco o temerário arremedo: “Grande é a cólera e a violência desse tempo moldado à percepção superficial e repulsa dos sentimentos. Grande é a aventura ou desventura racional que esqueceu do amor de fato...”

Atualmente, sobrevivo sem as cartas. Sobram-me bilhetes, principalmente os caseiros. Das filhas recebo alguns bem-humorados – do jeitinho de cada uma, com muito afeto; me fazem-me sorrir, cócegas no espírito, carinhos à alma. Da esposa recebo outros, mais densos, geralmente empapados de paixão, postados à cabeceira de nossa cama (temporariamente desprovidos dos inseparáveis bombons, por motivos óbvios, acredito) e alimentam o meu amor, dão forças para enfrentar a sanha diária, a travessia desse imenso árido que se tornou a vida nesses novos tempos. Passaram as cartas. E aqui, a crônica termina.

(Do Livro Amigos & Medos – Crônicas do Cotidiano)

 

Dr. Alcides Mandelli Stumpf

Médico,

Membro da Academia Erechinense de Letras,

Vice-presidente da A.A. Da Biblioteca Pública do RS.

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