Em seu encontro semanal com a turma do cafezinho, o Sapateiro de Bruxelas resolveu – sabe-se lá porque – discorrer sobre biografias de alguns santos católicos que têm passagens cheias de pecados e vidas luxuriosas. Logo de início cita como exemplos as ex-prostitutas Margarida de Cortona e Maria Egípcia.
De modo prático e singelo, preliminarmente, o mestre explicita que a santidade passou a existir somente após a vinda de Cristo à Terra e, de quebra, serviu para abrandar os ânimos politeístas de numerosos pagãos que migraram para a nova crença.
No entanto, reafirma o calçadista, que certos Santos ou Santas nem sempre foram exemplos de vidas virtuosas. Na verdade, muitos cometeram grandes erros; outros, inclusive, entregaram-se a total depravação antes de serem convertidos para o bem.
Atento aos detalhes, como de costume, o artesão informa ao grupo do café que para ser canonizado e elevado à santidade, o candidato tem que necessariamente transitar por um longo e rigoroso processo de avaliação. Precisa, no mínimo, provar que teve uma existência construtiva e próxima da perfeição. Porém, no passado longínquo – é importante registrar que isso ocorria somente há muito tempo - as coisas não aconteciam necessariamente bem assim e nem nessa ordem – frisa o artesão.
Sempre atualizado, acrescenta que tais trâmites se tornaram bem mais complicados de alguns anos para cá, seja pelo advento da tecnologia da informação ou mesmo pelas execráveis práticas do “politicamente correto”. Vejam que na antiguidade tudo era bem mais simples e fácil: não existia o VAR; não filmavam tudo e depois colocavam no whatsapp; e também não havia o patrulhamento ideológico da esquerda ou da direita.
Com a privacidade garantida e a malandragem correndo solta, alguns santos passavam boa parte de suas vidas aprontando poucas e boas, até optarem pelo arrependimento e a devida remissão dos pecados, alcançando então, sem maiores dificuldades, o ingresso no Reino dos Céus.
O Sapateiro alerta que os santos hoje parecem “sagrados demais” para serem imitados. Mas que, na verdade, são mais parecidos conosco do que imaginamos. Eles lutam contra os mesmos vícios, pecados e maus hábitos que nos sobrecarregam a cada dia. Por isso recomenda a nós, seus amigos de café, que tomemos como modelo estes homens e mulheres que nem sempre foram santos e, pela graça de Deus, venceram grandes obstáculos para se tornarem exemplos brilhantes de bons hábitos.
Na sequência o coureiro nos convida a uma rápida conferência sobre a vida de algumas figuras. Para isso usa da cronologia histórica, como é de seu gosto e costume:
Inicia ao citar São Dimas, talvez um dos melhores exemplos de pessoas que viveram uma existência cheia de faltas e se tornaram santos. Segundo a lenda, Dimas era um dos ladrões crucificados junto a Jesus. Teria se arrependido de tudo antes de morrer na cruz — o que garantiu a ele o habeas corpus além do passaporte de entrada para o paraíso.
Dimas corresponde ao personagem do “bom ladrão”, mencionado no Evangelho de Lucas no Novo Testamento, e também é conhecido como Rakh. Independente do nome ou da instância da corte que o absolveu, o santo se tornou, ironicamente, o protetor de casas e propriedades contra roubo/s, assim como o padroeiro dos presos. Até aqui nada de novo sob o Sol – como diria o grande Machado de Assis. Com certeza, particularmente no Brasil, continuamos a presenciar semelhantes disparates como se fossem as coisas mais normais do mundo.
Em seguida fala sobre São Calisto, que antes de virar santo, em Roma, onde viveu entre os séculos II e III, embolsava o dinheiro das doações de fiéis, além de ser um grande encrenqueiro e sonegador de impostos – também aqui nada nos espanta.
Certo dia Calisto resolveu tomar jeito e dedicar a sua vida à Igreja. Depois de se redimir, se tornou o diácono responsável pelas catacumbas da Via Ápia, conhecidas atualmente como “Catacumbas de Calisto”. Mais tarde, acabou virando Papa. Podem acreditar que é verdade – acentua o Sapateiro.
Agostinho de Hipona, o santo filósofo preferido do calçadista, conhecido popularmente como Santo Agostinho, viveu entre os séculos IV e V, no norte da África. Era de família abastada, mulherengo e, segundo os fofoqueiros da época, andava com duas amantes.
Diz o sábio artesão que Agostinho teve um passado tenebroso antes de dar a sua vida ao Senhor. Lutou contra a impureza por anos a fio, e mesmo depois de sua conversão ainda fazia essa oração: “Senhor, conceda-me castidade e continência, mas não ainda hoje”.
Santo Tomás Aquino, outro filósofo de imenso agrado do Sapateiro, é conhecido por seus escritos perspicazes na Summa Theologica. Sua existência terrena enfeitou a Igreja não só com os escritos fundamentais de filosofia católica, mas como experiência única e forte exemplo de pureza.
Certa vez, na tentativa de impedi-lo de tornar-se frade dominicano, sua família trouxe-lhe uma prostituta. Tomás rechaçou-a com um atiçador de fogo de lareira. Depois desenhou uma cruz na parede e se ajoelhou ao chão em oração. Ato contínuo, dois anjos apareceram a ele e colocaram um cinto angélico em torno de sua desenvolta cintura. Daquele dia em diante nunca mais sofreu tentações contra a pureza. Por intercessão de São Tomás de Aquino, o artífice roga que a turma do cafezinho obtenha o mesmo zelo e coragem que ele teve e abstenha-se do pecado carnal.
João Paulo II, canonizado recentemente em tempo recorde, tinha uma compreensão de Amor Esponsal tão profunda, que isso o inspirou a escrever a Teologia do Corpo, uma série de homilias sobre o propósito da vida, dignidade humana e sexualidade.
Recorda ainda o artesão, que segundo o polonês Wojtyla: “A castidade é uma questão difícil a longo prazo… Mas ao mesmo tempo a castidade é o caminho certo para a felicidade.”
Após essas rápidas e consistentes considerações, o Sapateiro de Bruxelas afirma que todos os santos citados e dezenas de outros não mencionados, são exemplos inspiradores de virtudes, e provam que o Senhor é capaz de transformar grandes transgressores em seres sagrados. Portanto, ainda há tempo de arrependimento e remissão para qualquer pecador irado e renitente que ande por aí.
Isso também mostra que até mesmo os corações mais frios, prepotentes e distantes de Deus podem se voltar a Ele e receberem uma vida nova. Explica para o pessoal do café, através da telinha brilhante do computador, que é só ter um pouco de boa vontade e colaborar com o destino que tudo se ajeita - mesmo para alguns parceiros mais exaltados e boquirrotos que por - bem ou mal - acabam por misturar alhos e bugalhos.
Ao final de sua prédica, como nosso guia filosófico e espiritual, recomenda para irmos em paz e não guardarmos rancor em nossas almas. Afinal a vida é muito curta para ser desperdiçada com amarguras e agressões a esmo. E assim, mais uma vez, após ouvir as sábias palavras do bruxelense, seguimos nossas vidas, como se pouco ou nada houvesse acontecido.
Dr. Alcides Mandelli Stumpf
Médico e membro da Academia Erechinense de Letras