Sobre o cuidado
Dizia Buda que "os insensatos abandonam-se sem esforço à negligência enquanto os sábios têm a vigilância como o seu maior bem". O bom e velho orar e vigiar. Ora oramos mais, ora vigiamos mais, como o ba-lan-ço-do-mar, assim, como que o soletra so-le-ne-men-te . Vigiar, zelar, cuidar, o ato de proteger aquilo que mais amamos, como os nossos amigos, por exemplo.
Quantidade
O sujeito que atravessa a estrada da vida sem semear amizades equipara-se ao agricultor que mantém as sementes no galpão com medo de perdê-las. Mas engana-se quem compara as amizades às simples brotações. Plantar amigos não é como cultivar cereais. Os amigos são como árvores e, à medida que crescem (as amizades), aumenta-se o vínculo. Para ter alguma “utilidade”, os cereais precisam ser ceifados enquanto as amizades precisam ser cuidadas. Confundir amigos da vida com amigos do facebook, das redes sociais, é o mesmo que não ver o tamanho de uma bela araucária que, passivamente resiste e assiste ao avanço das lavouras em sua direção. E olha que não faltam utilitaristas que as cortem para se obter mais um metro quadrado de lavoura.
Qualidade
Quando uma amizade nasce, nem sempre projetamos quanto tempo irá durar, o que pode nos conduzir para uma zona de conforto. Afinal, amizade é liberdade. É só depois de alguns anos, depois de reiteradas trocas fraternas é que percebemos que aquela pequena semente floresceu, buscou a luz, fincou raízes profundas, deu boa sombra e bons frutos. Mas como todo o ser vivo, as árvores também podem ter a vida abreviada. E como é triste quando isso acontece. Mesmo assim, há certas amizades que, mesmo depois de uma despedida “para sempre”, nunca cessarão. São como as belas árvores que servem à arte, em memória e, sobretudo, deixam raízes.
Cuidado
Entre ter muitos amigos e não conseguir cuidá-los ou ter menos amigos e mais qualidade, prefiro a segunda opção. Dizia o filósofo Kierkgaard que “a porta da felicidade só se abre para fora e quem tenta abrí-la em sentido contrário acaba por fechá-la ainda mais”. A metáfora é simples. Não podemos esperar que os amigos venham bater à nossa porta, para abrirmos “para dentro”. A verdadeira felicidade, a comunhão com os amigos, reside em abrirmos a porta “para fora”. É preciso ir bater à porta dos amigos, perguntar como estão, visitá-los e, mais do que perguntar, saber realmente como estão. Dar a mão, acompanhar e sofrer junto se for o caso.
Partida
Meu querido amigo Ricardo Aveline partiu cedo, especialmente para a família. Quem vê de dentro da própria porta, percebe que deixou a esposa e filho. Quem vê de fora, talvez de cima, sabe que jamais os deixará. Aveline era um sujeito incomum. Dono de um sorriso vasto que se estendia entre as colinas de suas bochechas, tinha a expressão do céu azul, brilhante como seus olhos e sempre agradável como qualquer palavra que entoava, com a voz que tinha o timbre o entusiasmo. Por óbvio que sentiremos muita saudade, assim como tenho certeza de que, quem teve o privilégio de estar com ele, teve muita sorte na vida. Mais que um amigo, um professor, uma biografia escrita com a mais bela caligrafia.
Legado
Quando estive no Brasil, combinamos de beber um café, mas ele não apareceu. Já era um sinal do avanço da terrível doença que atrapalhava a mente brilhante que sempre organizou bem a vida prática e a vida afetiva. Hoje sei que aquela seria uma despedida difícil, da qual o seu esquecimento me preservou, amorosamente. Quanto aos demais, suplico: abram a porta para fora. Corram saber como estão os seus amigos, os seus amores. Os amores da vida são as únicas sementes que nos será permitido levar quando deixarmos este plano. Os amores e os amigos. As verdadeiras provas de que a vida valeu a pena. Obrigado Ricardo!