Ensaio sobre a cegueira
Hoje, apresento aqui neste espaço um artigo que publiquei em Portugal na semana passada. É um artigo que fala sobre um livro que ainda não li. Portanto, não me dá direito à licença poética. Bem dizia Mário Quintana: “o pior cego é aquele que não quer ver”. Embora não seja uma sentença de sua autoria, referia-a em seus textos e, tal como José Saramago, entendia que a miséria reside na falta de empatia, na incapacidade de enxergar o outro.
Outras cegueiras
A cegueira que me leva ao ato de pensar é outra, menos relevante do que a descrita pelo poeta, mas, de certa forma, inquietante. Bem ao encontro do sentimento que teve José Saramago ao escrever essa sofrida obra, publicada há trinta anos. Refiro-me, portanto, ao comportamento humano enquanto leitor, consumidor de livros ou mesmo de jornais impressos, como este aqui, que oferece espaço para que as ideias saiam das cabeças e provoquem quem as lê. Eis a razão do termo “ensaio”, vez que a ideia deste texto não é afirmar nada, mas sim levantar questões.
Os chatos
O leitor já deve ter reparado como agem as pessoas cultas, que leem Saramago, que apreciam literatura ou mesmo qualquer outro tipo de livro. Elas costumam ser chatas, não é mesmo? Mas, calma! Eu também me enquadro nesse grupo. Afinal, é mesmo um privilégio ser chato. Não ter a preocupação de agradar aos outros, o caminho da integridade nos torna verdadeiramente livres e muito menos manipuláveis.
E quer saber por que somos chatos? Por uma questão meramente física. Porque somos esmagados, achatados, pelo peso de uma sociedade que corre em busca do consumo e que pressiona por uma satisfação constante de instintos e prazeres, que convenhamos, nunca parecem suficientes.
Fora da caixa
Então, já que somos poucos — os que leem — acabamos por nos tornar seres estranhos à maioria. Viramos os tais “pontos fora da curva” e, como em um modelo de dispersão, representamos aquela “sujeira” que surge no modelo. Somos a resposta que questiona, a pequena nuvem cinza no céu, que só é notada quando ousa interromper os raios solares. Os incautos a veem assim e questionam: se o tempo não está para chuva, o que faz essa nuvem atrapalhando o meu sol?
A obra
E já que citei Saramago, sim, dei uma espiadela no que diz a obra. A exemplo dos ensaios, o pouco que meus olhos permitiram ver me fez pensar que a cegueira descrita por ele possa ser o advento da internet. É uma hipótese curiosa, se lembrarmos que o lançamento do livro coincide exatamente com o início da rede mundial de computadores.
Essa nova forma de trocar ideias, de se comunicar e que tem tornado as pessoas cegas. Basta observá-las nas ruas, nos ônibus, no sinal vermelho. Estão todas “conectadas”, abduzidas por seus celulares, atualizando e buscando saber o que há de novo nas redes sociais. É o novo que fica velho em um segundo, e que já dá lugar a outra novidade, numa sucessão interminável. Uma infinidade de informações ocupando espaço na memória, a serviço de transformar pessoas em seres autômatos.
Contraponto
Pensemos então ao contrário, num exercício de empatia. Imagine uma pessoa que lê muito e que, de fato, fique cega. Não seria um castigo? Não seria revoltante? E quando o leitor esquece onde deixou os óculos? Está tudo pronto para aquele momento íntimo — a casa calma, o silêncio, a luz de leitura, a poltrona, o pufe para apoiar os pés... O sujeito pega o livro e, quando se acomoda, não encontra os óculos. Que sensação terrível, não? É uma cegueira temporária, sim, mas que demonstra o quanto é importante o sentido da visão para quem realmente quer ver.
Agora chega
Ser leitor é ser minoria e, as minorias parecem não ter importância. Neste caso, nem mesmo para os políticos de plantão. Por isso, ter argumentos complexos, por vezes transversais, é qualidade de um grupo restrito, capaz de ler, estudar e entender como funcionam os dois lados. O bom e velho contraditório.
Então, para que eu possa dormir eivado do mais puro sentimento de dever cumprido, escrevi este texto, chato, como deve ser, bem como são os leitores, essa gente esquisita que pega em livros enquanto uma multidão anda por aí “conectada”, controlada por aqueles que a manipulam em nome da nossa liberdade.