Um dos álbuns de música mais importantes e influentes da história, “War”, do U2, fez inacreditáveis 40 anos no ano passado, e um documentário a seu respeito passou a estar disponível no YouTube há pouco. É um momento legal para escutá-lo novamente ou para conhecê-lo. O caro leitor/a pode buscá-lo agora mesmo no celular e tocá-lo enquanto lê esta crônica. Eu quero destacar a última canção do álbum, chamada “40”.
Conta-se que a banda estava em estúdio e só havia mais duas horas para tirar da cartola uma canção que fechasse o álbum. Eram 6 horas da manhã e, às 8, um outro trabalho se iniciaria ali. The Edge, o guitarrista, recuperou o esboço, um pedaço de uma canção abandonada há tempos, e Bono Vox viu que havia uma Bíblia sobre uma mesa no estúdio. Folheou-a ao acaso e se deparou com o salmo 40, usando-o como letra para a melodia que o resto da banda desenvolvia.
O salmo, cuja autoria a tradição atribui a Davi e que também foi inspiração para Mendelssohn e Stravinsky, é assim: “Esperei com paciência no Senhor, e ele se inclinou para mim, e ouviu o meu clamor. / Tirou-me dum lago horrível, dum charco de lodo, pôs os meus pés sobre uma rocha, firmou os meus passos./ E pôs um novo cântico na minha boca, um hino ao nosso Deus; muitos o verão, e temerão, e confiarão no Senhor. Bem-aventurado o homem que põe no Senhor a sua confiança, e que não respeita os soberbos nem os que se desviam para a mentira (...)./ Sacrifício e oferta não quiseste; os meus ouvidos abriste; holocausto e expiação pelo pecado não reclamaste./ Então disse: Eis aqui venho; no rolo do livro de mim está escrito./ Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está dentro do meu coração./ (...) Não retires de mim, Senhor, as tuas misericórdias; guardem-me continuamente a tua benignidade e a tua verdade./ Porque males sem número me têm rodeado; as minhas iniquidades me prenderam de modo que não posso olhar para cima. São mais numerosas do que os cabelos da minha cabeça; assim desfalece o meu coração./ (...) Senhor, apressa-te em meu auxílio./ Sejam à uma confundidos e envergonhados os que buscam a minha vida para destruí-la; tornem atrás e confundam-se os que me querem mal./ (...) Mas eu sou pobre e necessitado; contudo o Senhor cuida de mim. Tu és o meu auxílio e o meu libertador; não te detenhas, ó meu Deus.”
Transfigurada pela lente artística de Bono, a letra da canção ficou assim: “Eu esperei pacientemente pelo Senhor/ Ele se inclinou e ouviu o meu choro/ Me ergueu e me retirou do fosso/ Para fora do barro lamacento/ Eu irei cantar, cantar uma nova canção (cântico)/ Eu irei cantar, cantar uma nova canção/ Quanto tempo para cantar esta canção? (Até cantar esta canção?)/ E por quanto tempo cantar esta canção?/ Por quanto tempo devemos cantar esta canção? (How long must we sing this song?)/ Por quanto tempo?/ Por quanto tempo? (...)/ Tu me puseste de pé sobre uma rocha/ Tu fizeste de meus passos, passos firmes/ Muitos irão ver, muitos irão ver e ouvir/ Quanto tempo para cantar esta canção?/ E por quanto tempo cantar esta canção?/ Por quanto tempo devemos cantar esta canção?/ Por quanto tempo?/ Por quanto tempo?”.
Esse “por quanto tempo” estende-se indefinidamente – a canção foi usada para encerrar os concertos da banda de 1983 a 1990. Quer dizer: isso fazia sentido, para Bono e para seu público naquele momento. O álbum, intitulado, como se disse, “War”, é sobre isso mesmo: sobre a guerra, a Guerra, todas as guerras. A primeira canção, “Sunday Bloody Sunday”, já trazia em seu refrão o verso “How long, how long must we sing this song?” Essa pergunta que se repete no fim do trabalho, essa pergunta que espera e que desespera, que mostra paciência e fé, no salmo, mas que, por outro lado, insiste, não se contém: “Por quanto tempo?” Canção e salmo parecem ser sobre confiança, sim, mas sobre desconfiança também. “Senhor, apressa-te em meu auxílio.”
Repetida no disco e nos shows, a pergunta se prende à mente como um mantra, transborda-se da temática da guerra e inunda a vida e seus conflitos, o rolo da vida de nós. Até quando? Por quanto tempo?