O que é cultura? Como defini-la e qual sua relevância? Certo é que ela está mais presente do que se imagina, tanto na formação do indivíduo na sociedade, como na relação entre eles. A cultura está no centro do desenvolvimento econômico e social. Para falar sobre esse assunto, a reportagem do Bom Dia conversou com o professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) - Campus Erechim, Paulo Müller. Ele afirma que "infelizmente, o cenário atual é favorável ao recrudescimento de uma concepção pública de cultura e à reedição de velhas fórmulas elitistas que distinguem a "alta" da "baixa" cultura ou, o que é ainda pior, uma simples dispensa da cultura como algo socialmente relevante".
Muitos significados
"O termo cultura é polissêmico, ou seja, tem muitos significados diferentes dependendo do ponto de vista de quem fala. Para a maioria das pessoas, cultura refere-se a tudo o que fazemos de modo mais ou menos automático, nossos costumes e ideias que trazemos de nossa criação. Do ponto de vista do Estado, em geral, cultura refere-se a um conjunto específico de práticas artísticas que podem ser fomentadas por linhas de financiamento e incentivo. Na academia, o conceito de cultura normalmente remete a sua concepção pela Antropologia social como a dimensão socialmente compartilhada das ações sociais, ou seja, a partir de qual visão de mundo tomamos nossas decisões e quais critérios utilizamos, mesmo que inconscientemente, para delimitar a fronteira entre nós e os 'outros'", explica Paulo.
Dinâmica
Segundo o professor, seja qual for a concepção de cultura da qual se parte, ela é dinâmica. Isso quer dizer que, embora algumas pessoas, grupos e organizações cultuem raízes ou se apoiem em uma noção de tradição como algo que se preserva, a sucessão de contextos históricos, econômicos e sociais nas quais determinadas práticas culturais se desenvolvem, modificam as noções que se tem do que é ou deixa de ser "cultural".
"Debates em torno de políticas de fomento como, por exemplo, a lei Rouanet, expressam essa dinâmica. Quais gêneros artísticos são privilegiados por essa política, e em que medida esses gêneros representam o que os brasileiros entendem como sendo "sua cultura"? O fomento precisa investir na diversidade, e não em fórmulas de sucesso do mercado do showbiz, para que cumpra seu papel de política pública", afirma.
Efeito "perverso"
Paulo afirma que um efeito especialmente perverso das estratégias de investimento cultural predominantemente com base em retorno econômico é a contínua subordinação do desenvolvimento cultural local à existência de modelos de sucesso nos quais se espelhar, e a dependência da consagração das expressões artísticas e culturais locais por atores alheios ao seu circuito de produção e recepção. "Mesmo com a Internet, onde supostamente um artista independente só depende de atingir o gosto do público, não podemos ignorar o fato de que o próprio gosto e a sensibilidade artística de modo geral foram e são colonizadas pelas fórmulas de sucesso, fomentando sua reprodução ao mesmo tempo em que obstrui o surgimento de novas formas de expressão cultural", comenta.
Reprodução da desigualdade
Nesse sentido, observa Paulo, o modo como se concebe a cultura está atrelado ao modo como projetamos e intervimos na sociedade como um todo. "Ao atribuirmos valor cultural somente a manifestações artísticas que gerem retorno econômico imediato, contribuímos para a reprodução da desigualdade em todos os sentidos", diz.
E, acrescenta, "isto é, se determinados setores da sociedade não se veem representados na mídia, na arte, na comunicação social mais ampla. Isso reforça a noção de que estes setores não fazem parte da sociedade, ou o fazem apenas marginalmente, obrigando-os a se adequarem a determinadas práticas culturais com os quais não se identificam para se sentirem minimamente incluídos".
Segundo o professor, aí está a relevância, por exemplo, dos esforços dos movimentos negros, LGBTQ+ e feminista por representatividade em novelas, filmes e comerciais. "Não se trata apenas da imagem na televisão ou na internet, mas da inclusão dessas identidades no leque de possibilidades do que se concebe como ser brasileiro, gaúcho, erechinense", diz.
Desta forma, esclarece Paulo, a ideia de representação é, assim, essencial para se entender como a cultura afeta nosso cotidiano. E cidades como Erechim fundaram-se historicamente em um processo de colonização. Nesse processo, somente aqueles atores que correspondiam ao projeto hegemônico de nação foram contemplados e reconhecidos como "habitantes" ou "cidadãos" regionais".
Projeto eugenista
O professor afirma que o projeto hegemônico de nação brasileira no início do século XX era eugenista e, portanto, racista. "Buscava eliminar a diferença em termos etnicorraciais do Brasil em relação às nações consideradas desenvolvidas, sobretudo os países da Europa ocidental, considerando que, com isso, fatalisticamente nos tornaríamos um país dotado das mesmas faculdades humanas que as levaram a esse posto. Entretanto, o que se observa é exatamente o contrário. Quanto mais buscamos nos espelhar nas sociedades europeias, mais afirmamos que estamos sempre à espera de que nos digam como sermos nós mesmos e o que fazermos para isso", observa.
E, acrescenta, "trata disso o famoso "complexo de vira-latas" cunhado por Nelson Rodrigues, e que hoje é reforçado por um alinhamento ideológico do atual governo federal com os governos dos Estados Unidos e Israel, países que se afirmaram como potências justamente por sua postura imperialista tanto no campo militar, quanto no político e, sintomaticamente, também no campo cultural".
De acordo com Paulo, a tendência à supressão de expressões culturais identitárias como contrapartida a um alinhamento ideológico, se mostra mais pronunciadamente no campo da preservação do patrimônio histórico e cultural. "Por um lado, historicamente temos em Erechim uma sobrevalorização de símbolos que colocam em relevo a colonização e, por extensão, ocultam as populações indígenas e negras como habitantes deste território", afirma.
Castelinho
Ele explica que o Castelinho, por ser a antiga sede da Comissão de Terras, é representativo desse alinhamento entre a formação da região, o projeto de nação e o modelo eurocêntrico de colonização. "Contemporaneamente, outros alinhamentos vêm gerando a supressão cultural do legado colonial devido ao custo de sua manutenção. Refiro-me, aqui, à derrubada de prédios históricos e à resistência de empresários e proprietários de imóveis às política de preservação de prédios e fachadas passíveis de tombamento como patrimônio cultural", diz.
Conforme Paulo, tais ocorrências são indicativas de um novo alinhamento a ideias de desenvolvimento associadas a uma urbanização cosmopolita e que expressem o advento da era da informação e da ubiquidade do capital financeiro. "Edificações, sobretudo as com fins comerciais, são consideradas tanto mais modernas quanto melhor reproduzam padrões imagéticos oriundos dos novos centros de poder financeiro como Dubai e Beijing, tendência que se observa mesmo em centros financeiros já consolidados, como Nova Iorque, Berlim e, no caso brasileiro, São Paulo", salienta.
Ele acrescenta que advém desse imperativo de "atualização" dos traçados da cidade os projetos de novas centralidades e polos comerciais e administrativos, que também já se mostram como tendência em Erechim. "Por outro lado, isso implica na diminuição, quando não na supressão, de investimentos nos elementos culturais que enfatizam aquilo que a cidade e a região têm de único, e que podem ser interpretadas de diferentes perspectivas".
Indiferença ao patrimônio
De acordo com ele, a indiferença em relação ao patrimônio local ou nacional em prol de um espelhamento em um desenvolvimento hipermoderno tem como sintomas, por exemplo, o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro e a escassa mobilização da elite econômica para sua reconstrução. "Enquanto a comoção com o incêndio na catedral de Notre Dame em Paris é usada como forma de demonstrar o cosmopolitismo e o alinhamento ao ideário cultural irradiado direto da fonte eurocêntrica, não mediada, assim, pelo 'caráter brasileiro' em sua versão preconceituosa e racista que se define pela 'indolência' ou pela 'preguiça' (vide declarações do atual vice-presidente sobre as populações negra e indígena), por oposição ao europeu 'trabalhador' e 'empreendedor'", explica.
Cenário atual
De acordo com Paulo, "infelizmente, o cenário atual é favorável ao recrudescimento de uma concepção pública de cultura e à reedição de velhas fórmulas elitistas que distinguem a 'alta' da 'baixa' cultura ou, o que é ainda pior, uma simples dispensa da cultura como algo socialmente relevante".