Jejum dá saudade
Já que entrei nessa de fazer jejum de carnes e de álcool, deveria contar os fatos da semana, como tenho feito desde o carnaval. Porém, em uma semana nada mudou. Logo, acredito que tenha entrado no “novo normal”. Continuo estável e indiferente, prova que o desafio não tem me feito, nem bem, nem mal. Por isso hoje vou falar de outra coisa: da saudade potencial.
Saudade potencial
Esse é um daqueles termos que inventamos na ânsia de definir sentimentos quando eles aparecem. Semana passada, uma grande amiga, da minha idade, despediu-se da mãe. Para os nascidos nos anos setenta e que tiveram o privilégio de ter pai e mãe com saúde, é chegada a hora da saudade potencial. Aquele momento em que o “nunca mais” finalmente chega. Uma época da vida em que andamos a fazer mil coisas, mas nossos pais estão lá, à espera do que tanto evitamos conversar. Saudade potencial é aquela saudade que não sentimos, mesmo se quisermos. É aquela que vem com a passagem, que só vamos experimentar quando for a hora. Nem adianta sofrer por antecipação.
A vida em curvas
Se olharmos a vida como um gráfico, veremos que há sempre uma curvatura. Quando nascemos e crescemos, a linha sobe lindamente como o sol num dia de verão. Depois, quando adquirimos um pouco de experiência, a linha deixa de subir e passa a crescer mais lentamente. Os anos vão passando. Vamos curtindo a vida, as conquistas e entramos numa espécie de “voo de cruzeiro”. Depois disso entramos numa espécie de inércia, como se a vida fosse uma constante e abaixo dela, um abismo. Só nos damos conta do contrário quando os que estão acima de nós, na passagem do tempo, veem suas linhas declinarem. Até que cruzam com as nossas e morrem. É o fim para uns, recomeço para outros. O ponto em que se cruzam, sabemos, dura poucos dias.
Oitenta anos
Foi num desses dias de outono, depois do verão de 45. O mundo via encerrar a Segunda Guerra Mundial. Tudo passaria a ser diferente. E lá estava ela, minha mãe. Quando nasceu, na localidade de Linha Santa Catarina, hoje Cruzaltense, o Brasil ainda nem havia conquistado a primeira copa do mundo. Hoje já são cinco. Ela cresceu, viu o homem pisar na lua, o feminismo dar voz às mulheres e tantas outras revoluções. Foi mãe, dona de casa, empresária, mulher, amiga. Teve muitos papéis. Desempenhou todos com força e dedicação. O de irmã e tutora dos mais novos foi seu grande destaque. Tempo de comer pão com banana. Um universo de dúvidas rondava o futuro do “país do futuro”. Soube segurar as pontas quando meus avós desceram a curva da vida. E hoje, cheia de histórias, completa oitenta anos com uma energia que nem sempre cabe em seu corpo.
Futuro
Eu sei. A vida é assim. Há tempo para tudo, mas não podemos estar sempre onde queremos. Quando saímos para vida, tomamos estradas que pouco a pouco vão ficando distantes de quem amamos. Mas as raízes chamam, e quando a vida chama, nem sempre estamos prontos, dispostos ou próximos. É neste momento que nos damos conta da tal “saudade potencial”. Ela lá está, instalada no fundo do peito, pronta para irromper, quando não é mais possível esconder. Parabéns Dona Dulce! Com 80 anos já não posso desejar muitos e muitos anos de vida. Mas hoje, no teu aniversário, nada me impede de desejar que tenhas a plenitude das tuas horas e que possas prosseguir com alegria, à tua maneira. Afinal, mereces.