A reincidente tragédia da barragem em Brumadinho de Minas Gerais escancarou um problema sério no país e mostrou as fragilidades e lacunas de uma estrutura com alto impacto social, econômico e ambiental. O desastre de Mariana três anos antes não foi um exemplo suficiente para mudar essa realidade, que hoje se repete e traz prejuízos humanos e ambientais irreparáveis e acendeu o alerta do país na questão das barragens de rejeitos de mineração. Afinal, ficam as perguntas: como é feita a fiscalização, monitoramento, e quais são os cuidados ambientais e com a vida humana, necessários para esse tipo de atividade.
Dentro disso, voltamos nosso olhar para a realidade local e as represas de água no Rio Uruguai, que produzem energia, mas também exigem muitos cuidados e atenção, apesar de ser uma realidade muito diferente do que foi vista em Brumadinho e Mariana. Na primeira entrevista, ouvimos o posicionamento da coordenadoria regional da Defesa Civil e o Consórcio Itá e Consórcio Machadinho. Nosso objetivo é ampliar o espectro de análise e construir contrapontos, para ver o que pensam os diferentes envolvidos nesse contexto. Nessa matéria conversamos com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) do Rio Grande do Sul para ver a sua visão sobre tudo que está ocorrendo no país.
Segurança
Conforme o MAB, de acordo com a Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei nº 12.334/2010) a segurança de barragens é responsabilidade do empreendedor e a fiscalização é dividida entre quatro grupos, de acordo com a finalidade da barragem.
“As barragens para geração de energia, como é o caso das que temos na bacia do Rio Uruguai, devem ser fiscalizadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Não temos nenhuma garantia que a Aneel, no caso das hidrelétricas, fiscalize as barragens”, ressalta o MAB.
O MAB afirma que as barragens para contenção de rejeitos minerais, como a barragem de Fundão que rompeu em Mariana e as da Mina Córrego do Feijão, deveriam ser fiscalizadas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Barragens para contenção de rejeitos industriais são fiscalizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) ou órgãos ambientais estaduais, a depender da emissão da Licença Ambiental. Já as barragens de usos múltiplos, pela Agência Nacional de Águas (ANA) ou de órgãos gestores estaduais de recursos hídricos.
O MAB afirma que atualmente na bacia do Rio Uruguai (considerando afluentes e leito principal) há sete grandes hidrelétricas, Barra Grande, Machadinho, Itá, Monjolinho, Campos Novos, Passo Fundo e Foz do Chapecó.
Segundo a lei nº 12.334, as empresas donas das barragens são as responsáveis para tomar medidas e conduzir procedimentos de segurança. “Não há nenhum histórico das empresas donas dessas barragens terem realizado treinamento com as famílias que moram ao entorno dos reservatórios, instalado sirenes, construído informativos para os municípios ou outros procedimentos básicos”, afirma o MAB.
Este ponto é uma das reivindicações do MAB e dos atingidos e atingidas por barragens para que a Política de Segurança de Barragens seja de fato aplicada, por se tratar de um direito do povo.
“Em uma possível situação de rompimento de uma das barragens da Bacia do Rio Uruguai, como a de Machadinho ou a de Itá, os impactos seriam enormes, podendo vitimar toda a população das barrancas dos rios, chegando até a fronteira com a Argentina, se considerarmos a grande quantidade de água presente nos reservatórios. O reservatório da UHE de Itá tem a dimensão de 103 km² de terras inundadas e, já o de Machadinho, possui 500 km de perímetro”, observa o MAB.
Segundo o MAB, uma questão importante e pouco abordada quando se trata de barragens são os direitos humanos. Segundo o Relatório Final da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH, 2010) 16 direitos humanos são violados no processo de implantação de barragens no Brasil.
Entre eles está o direito de ir e vir; direito a informação e participação; liberdade de reunião, associação e expressão; ao trabalho e a um padrão digno de vida; moradia adequada; educação; um ambiente saudável e saúde; melhoria contínua das condições de vida; a plena reparação das perdas; justa negociação, tratamento isonômico, conforme critérios transparentes e coletivamente acordados.
Direito as práticas e aos modos de vida tradicionais, assim como ao acesso e preservação de bens culturais, materiais e imateriais; reparação por perdas passadas; direito dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais; de grupos vulneráveis à proteção especial; de acesso à justiça e a razoável duração do processo judicial e de proteção à família e a laços de solidariedade social ou comunitária.
“A partir desse levantamento, resultado da análise ao longo de quatro anos de denúncias de violações, podemos ter uma dimensão dos passivos enfrentados pelas populações atingidas, nas esferas social, emocional, econômica e ambiental”, ressalta o MAB.
Conforme o MAB, os impactos emocionais são marcantes, desde a perda do vínculo com o rio, até dos laços comunitários e familiares. Na esfera ambiental, também são intensos, como diversos prejuízos à saúde, pela proliferação de doenças e má qualidade da água; pela secagem de poços para abastecimento humano; pelo surgimento de microclimas, que alteram a dinâmica de produção de alimentos e, consequentemente, a cultura alimentar da população. Pela submersão de terras produtivas, localizadas nas partes baixas dos rios, ricas em sedimentos e nutrientes; pela formação de neblina; assoreamento dos rios e diminuição drástica da fauna aquática. “Os impactos das barragens afetam também economicamente as famílias atingidas, desde a alteração da dinâmica produtiva até o alto preço da tarifa da energia elétrica”, observa a organização.
No contexto nacional, analisa o MAB, a fonte hídrica é importante para a geração de energia e para o desenvolvimento interno, sendo uma fonte renovável e de baixo custo de produção. “Porém, a política energética vigente no Brasil é voltada para atender aos interesses da iniciativa privada internacional, em que ocorre a exploração de nossos recursos hídricos, que são patrimônios nacionais, estratégicos para nossa soberania enquanto nação”, ressalta.
E, acrescenta, “quase metade de toda energia produzida é usada pelas indústrias (consumidores livres), principalmente as exploradoras de ferro, alumínio e celulose, chamadas de eletro-intensivas, as quais pagam uma tarifa bem menor em relação ao restante dos consumidores”.
Segundo o MAB, essas empresas extraem as riquezas e levam o lucro pra fora, gerando poucos empregos e deixando para trás passivos sociais e ambientais.
O MAB explica que no caso das empresas e usinas que são consideradas privadas, em grande medida foram construídas e ainda são financiadas com recursos do governo. “Com o lucro da venda da energia, as obras se pagam entre três e quatro anos, e os donos têm um prazo de mais de 10 anos para pagar o empréstimo, lucrando durante os 30 anos do prazo da concessão do serviço”, afirma.
“Atualmente, o setor elétrico está novamente no caminho das privatizações, o que sempre resulta em prejuízos para o povo, com má qualidade do serviço prestado, no crescimento do número de acidentes de trabalho no setor, e no aumento do preço das tarifas, principalmente para o povo trabalhador”, avalia o MAB.
Assim, a organização entende que a política energética nacional não atende as necessidade da população, servindo ao enriquecimento de empresas privadas estrangeiras e deixando para trás uma grande quantidade de passivos para o povo, tanto os atingidos diretos por barragens, quanto para todos os brasileiros que são atingidos pelo modelo energético.
Marco regulatório
Segundo o advogado Leandro Scalabrin de Passo Fundo, assessor do MAB e integrante da Comissão Nacional de Direitos Humanos, “ao longo dos anos conquistamos vitórias, mas ainda não conquistamos direitos”.
Scalabrin ressalta que não existe um marco legal regulatório que assegure os direitos que os atingidos por barragens conquistaram em mais de 20 anos de lutas sociais em âmbito nacional. “É nesse sentido que o MAB reivindica a criação da Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB)”, destaca.
Ele entende que tem muito o que ser melhorado, e isso depende da construção de um projeto energético popular para o Brasil, que leve em conta a soberania nacional, desde a manutenção das empresas públicas do setor energético e a reestatização das que foram privatizadas.
Da mesma maneira, o reconhecimento da população atingida por barragens; a participação popular nas decisões sobre o setor; a redução das tarifas; a aplicação da Política Nacional de Segurança de Barragens; a adequada destinação do recurso da Compensação Financeira por Uso de Recursos Hídricos (CFURH – também conhecido como “royalties das barragens”) recebido pelos munícipios atingidos por barragens, considerando as necessidades reais da população.
Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), “o crime ocorrido em Mariana ainda permanece impune, com a população atingida sofrendo dia após dia com o descaso da Samarco, que tem como principais acionistas a Vale e a BHP Billiton, assim como da Fundação Renova, criada pelas empresas a partir de uma falsa promessa de reparação dos danos aos atingidos, o que nunca ocorreu”.