Cristão de m...
Porto Alegre, domingo de manhã. Dia frio de inverno, com os tons de cinza da estação. Acordei tarde. Havia participado de dois churrascos no dia anterior, um privilégio. Dormi na casa dos meus pais. Me dirigia ao mercado para comprar pão e frutas enquanto respondia ao meu irmão e revisor destas colunas, a falta de inspiração momentânea para escrever.
Olho para a rua, deserta e fria e vejo uma pessoa dormindo, no chão gelado e duro. Segui o meu caminho até o Zaffari. Fiz minhas compras. Meu conforto estava garantido. Mas ao retornar, reparei nele, no morador da rua, arrumando suas muito poucas coisas. Chamou minha atenção, o carinho com que ele dobrava o cobertor que o protegeu do frio. Não consegui passar indiferente por aquela pessoa. Travei.
Me aproximei e conversei com ele. Me contou, de pronto, que era cidadão de bem, como se fosse necessário se justificar. Parecia temer uma espécie de condenação por dormir na rua. Apresentou sua identidade, bem novinha e me contou um pouco da sua história, quando começou a chorar, ali, ajoelhado aos meus pés, confortavelmente quentes. 42 anos, sem pai, sem mãe, sem família. O abracei como pude. Ele estava limpo e curiosamente não cheirava mal, como a gente sempre imagina.
Alcancei a ele o que tinha na carteira. Estava faminto, como eu. Então ele citou a passagem bíblica em que Jesus foi acolhido pelos mendigos (Mateus, 25:40). Se dizia grato por eu ter reparado nele. Ainda chorando, abriu um enorme sorriso de gratidão, enquanto contava do medo que sente ao dormir na rua. Sim, sente, exatamente neste tempo verbal, porque ele ainda dormirá nas ruas. O pouco que tem, precisa carregar consigo, pois ou lhe roubam, ou jogam fora as suas pouquíssimas coisas.
Ao deixa-lo, depois que se acalmou, caminhei um pouco e parei para observar uma donna, com seus dois pets, se ela repararia naquele sujeito. Não consegui ver. Ele estava a me observar, com um largo sorriso em seus lindos olhos azuis e me acenava com alegria e entusiasmo, como se cuidasse o meu caminho. Cheguei em casa chorando. Abri a porta do confortável apartamento dos meus pais. Abracei meu pai. Chorei. Não consegui tomar café da manhã. Entendi que o jejum era necessário, por respeito. No meu íntimo, repetia a mim mesmo, o cristão de merda que sou.
Porto Alegre tem muito dessas coisas, dessa abissal indiferença social. Mas ali, na rua onde eu brincava, na triste linda zona sul, como cantava Raul, nunca tinha visto nada assim. E aqueles lindos olhos azuis do mendigo, lavados de emoção, me fizeram escrever essa coluna. Entendi ainda mais a indignação do colega Neivo. Somos uns cristãos de m... (grifos meus). E minha inspiração estava ali, dormindo na rua.